segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Razões de Viver

Minha mãe morreu. Morreu enquanto eu proferia uma conferência em um congresso. Enquanto elogiava qualidades femininas sem saber que, involuntariamente, a homenageava. Morreu muito. Como morrem muito as pessoas com graves enfermidades que, mesmo bem cuidadas, como ela o foi, sobrevivem semanas a fio, com suporte, vias e fios. Teve boas razões de viver a despeito de seu semi-analfabetismo e simplicidade. Viveu o mundo encasulado de uma família. O mundo externo só tinha importância quando adentrava seu circulo familiar. Ainda assim foi muito querida. Por quê? Porque criava poemas em sua cozinha e fazia do acolhimento seu sentido de vida.
Mas dizia que eu falava a conferentes e falava de mulheres. Não é bem assim; falava de humanos, do mundo atual que criaram, e das dificuldades da mulher se inserir nesse mundo. Falava sobre a instabilidade atual das formas de vida que se dissolvem, como se diluíram as crenças. Sim, porque as formas de vida "são o aspecto externo das crenças básicas que alimentam nosso mundo e nos afiançam o que podemos esperar dele. O homem vive de crédito, o mundo não passa de um vasto sistema de créditos, e os fundos que garantem esse crédito são as crenças". Quer dizer, as crenças se confundem com a própria realidade.
Nós, médicos, sabemos bem o que isso representa. Somos obrigados precocemente a reavaliar nossas crenças e a amalgamá-las com provas. Há poucas provas. Por isso, somos impelidos a harmonizar crenças pretéritas em que nos formamos com as provas vigentes, o que sempre é conflitivo. E resolver essa dualidade com equilíbrio. Resolver de maneira ativa e permanente, o que implica esforço constante, revisões periódicas, sem abandonar o equilíbrio necessário. Esforço esse que as massas por impossibilidade, imediatismo e por falta de padrões claros, no passado visíveis e bem distintos, não seguem.
Considerem a humanidade há um século, na passagem do mesmo, num período que se estendeu à primeira guerra mundial. Chamamos belle époque. Porque o mundo enriquecia, e ventos amenos de doçura e de alegria de viver refrescavam a segurança vital em que os humanos se sentiam. Não importava o fato de viverem metade do que vivemos hoje, o importante é que se sentiam seguros nas suas formas de vida. Senão vejamos.
As unidades típicas das formas históricas eram as nações, bem delineadas e diferenciadas, embora pudessem haver rebuliços no seu entorno. Hoje as fronteiras se tornam indistintas com a formação de grandes blocos. Ou conflitivas, por bloqueios socioeconômicos. Nas formas sociais há uma promiscuidade entre o público e o privado que desintegra o tecido dos estados. E o núcleo familiar em franca dissolução. Médicos americanos começam a fazer treinamento para lidar com formas de famílias múltiplas. Notem que não estamos fazendo juízo de valor, apenas notificando mudanças. Nas formas jurídicas, não se delineiam o futuro do direito de propriedade e do direito adquirido. Nas formas políticas, o socialismo implodiu por defeito inato; o capitalismo, com o codinome de Estados liberais, sofre de vários sentimentos de culpa, e a social democracia, também chamada de via intermediária, não se agüenta nas próprias pernas, vide a França atual, sendo exceção os nórdicos. A globalização está criando a mesmice, não havendo novas soluções à vista. As formas religiosas se corromperam em falsos profetas e falsos credos; o sagrado se desnudou e perdeu valor face à sua mercantilização. A religião começou a ser vivida basicamente como angústia. Nas formas sexuais o masculino e o feminino estão se dissolvendo na indiferenciação. Passamos a viver o polimorfismo sexual. As formas de lazer, que eram criadas sem custo em qualquer terreno baldio, foram contaminadas pelo dinheiro, propaganda, regulamentações e violência. As regras do jogo são exercidas pelos mais poderosos. As formas artísticas perderam seus parâmetros; hoje tudo é "arte". Qualquer um tem o direito politicamente correto de fazer arte. Então uma perguntinha simples: das músicas que se compõem hoje, qual delas será tocada daqui trinta anos? Certamente poucas, se alguma. Por derradeiro, as boas maneiras. Bem, essas foram para as cucuias. Quando me formei, sempre que encontrava um médico num corredor de hospital, mesmo que desconhecido, dizia: — bom dia, doutor! E era redargüido. Hoje, passamos batidos. A polidez se aposentou; logo a que não teria direito, por obrigação perpétua.
Ao somatório do que es¬crevi se une a violência. E estamos, ao contrário da belle époque, num mundo de inse¬gurança, de brutalidade. Os valores borrados, a moral afrouxada, a linguagem tati-
bitate, o ambiente poluído, os ideais sumidos, e a cultura rarefeita.
O que causou esse colapso das formas? A massificação e a tecnologia. Em princípio nada contra, podem ser coisas boas, Mas a maneira como se disseminaram e são usadas estão gerando o caos.
Antigamente, minha dileta leitora, sua funcionária doméstica não lhe invejava a roupa; invejava a da vizinha de bairro; esse era seu parâmetro de conquista. E sabia que tinha que lutar, progredir nas habilidades específicas, para se tornar mais valiosa e ascender na escala social. Hoje, o filho dessa mesma funcionária, via sociedade de consumo, quer porque quer o tênis NIKE de seiscentos reais. E os limites, sempre tão necessários em qualquer sociedade, ficam difíceis de ser estabelecidos. Não raro, vias tortuosas fazem adquiri-lo.
A massificação, na verdade, nivela por baixo. Para que criar belezas simples, mas eternas, como: "queixo-me às rosas/ mas que bobagem/ as rosas não falam/ simplesmente as rosas exalam/ o perfume que roubam de ti"; se posso balançar o corpo com as mãos na genitália e falar um monte de grosserias? E como o ritmo é contagiante, lá estamos nós nos balançando ao som da chulice.
Há alguns anos foi editado no Brasil o Nome da Rosa do Umberto Eco. Ficou acessível à massa em edição popular. Todos correram a comprar. Sucesso editorial. Era chique tê-lo na estante. Quem o leu? E se leu quem foi além do começo? Indo além quem entendeu? Poucos. Porque exigia uma base de conhecimentos e referências para ser lido com proveito e prazer. Obviamente poucos tinham. A massificação falha porque entrega o que não é da pessoa, por inatingível. O que é supérfluo ao seu estádio de desenvolvimento. Ou supérfluo por irrelevante, o que é mais comum.
E a tecnologia? Ora, quem iria contra. Mas avança na velocidade impossível do humano. Cria saturações e excrescências. O celular fez do comunismo uma piada. Jamais com antecedência se imaginou que um artefato desses se universalizasse à base da pirâmide social. E quem paga a conta de crianças e adolescentes usando-o sem necessidade, por lazer? Ah, a tecnologia, essa coisa extraordinária que aos olhos de quem não a entende, as massas, parece mágica.
E todos a querem mesmo quan¬do desnecessária. No caso médico serve à pesquisa, e muito ao diagnóstico e à cura. Mas se usada desnecessaria¬mente, por via torta e sem mestria, pode matar. E sabemos, quanto mais invasivos, com ou sem tecnologia, nos tornamos mais responsáveis. E essa res¬ponsabilidade se dilui cada vez mais. Cada vez mais damos preferência ao científico-tec-nológico menosprezando o ético-humanístico. Sem percebermos que a solução está na associação. O que é mais do que uma rima.
É esse mundo de formas de vida caducas que estamos entregando às mulheres médicas. Elas que galgaram lentamente e com muito esforço a pirâmide social se vêem agora competindo num mundo indistinto, onde predominam incertezas. Além de competir com a racionalidade, a objetividade, e a rudeza masculinas, não têm no seu horizonte regras claras onde possam usar sua dedicação, delicadeza, detalhismo, sentimentalismo.
Esta última palavra, no entanto, me faz evocar a possível solução. Educação sentimental. E não pensem, lá vem o último dos românticos! A educação sentimental aperfeiçoa a pessoa (e é na pessoalidade que exercemos nossa vida) para a bondade, a amizade, o amor, em todas as suas diver¬sas formas, inclusive a intersexual. Desbasta as paixões, sem suprimi-las; expande os sentidos, para acurá-los; e ainda refina o diálogo com nossos irmãos. Se a vida é a convivência de contrários, e o é, ajuda na compreensão dos contrários.
E tudo isso me leva ao preito involuntário que fazia. Sim, minha mãe morreu muito. Mas enquanto viveu, também viveu muito, porque teve boas razões de viver. Simples e encasulada, fez o melhor possível dentro de sua circunstância e para seus circunstantes. Militou em toda a experiência doméstica com denodo e carinho. Os seus acolhidos e comensais são prova disso. Não pode cultivar o mundo externo. Mas quis dotar o filho com essa possibilidade. Dotou-o com genética e educação sentimental. E são parte de minhas razões de viver, tentar entender. E levar aos outros um pouco desse entendimento. Por isso falava, enquanto ela morria. Outro fosse o cenário, teria sorrido e lacrimejado, como sempre fazia quando emocionada. Requiescat in pace, nobre senhora do mundo interno.
Nota: O autor agradece ao grande ensaísta Gilberto de Mello Kujawski o decalque de muitas idéias.

Texto retirado da revista Iátrico n° 20
obs: a formatação não está lá mui gatinha n...(preguiça)

8 comentários:

Gabriel Carvalho disse...

rpz
pode-se dizer que eh legalzinho
é tudo o que tah em voga sobre sociedade no momento espremido em um texto soh... Ateh comungo de algumas ideias, mas no fundo rola um sentimento de capitalista frustrado(referencias em Ouro de Tolo Raul Seixas)... E a idéia de violência patrocinada pelo consumo, será que o pobre, como ele gostou de afirmar, deve se reduzir a sua insignificância?

críticas: O celular n fez do comunismo uma piada(sem pq argumentar) e o comunismo n falhou por defeito inato, "falhou" por causas socioeconômicas da mesma forma que falhou o capitalismo(crise de 29)...
E ps: ele ainda n falhou...(referencias em eric hobbsbaum introdução em A Era dos Extremos)

Gabriel Carvalho disse...

E cá entre nós
ele me deixa escapar uns romantismos...
"antigamente as formas de lazer existiam em qualquer terreno baldio..." valha-me deus
na época dele n tinha cinema n?
porra

Eu gostei... Com muitas ressalvas, mas gostei.
Entretanto eh bem mais vc mesmo
um texto pra pessoas ranhetas que gostam de reafirmar que o mundo tah uma merda(à frango)

malemolente disse...

rpz... eu ñ vou o texto pra ficar vendo cada crítica sua e tal.
Em relação ao pobre, há a necessidade dele se reduzir MAIS, já que quem dá significados na nossa sociedade é a mídia?
O capitalismo falhando ou não é o que comanda hoje em dia(inclusive sua internet paga!) e a crise de 29 foi a 77 anos, vc poderia ter usado algo mais recente, como a crise imobiliária de poucas semanas atrás
O resto dos comentários eu não lembro do q o cara falou =/
Convenhamos que uma criança não vai sozinha ao cinema e sequer 7 dias na semana para brincar com os amigos. Seu conceito de lazer foi aniquilado pelo 3° ano?
Concordo que o texto fala que o mundo ta uma merda e não acredito que quando sua mãe morrer o texto que você escrever falando dela não vá ser bonito, nem feliz falando de um mundo maravilhoso e de um céu dourado...

Albanildo disse...

Achar que o mundo tá lindo do jeito que tá é, no mínimo, mta ingenuidade. Achar que ele tá totalmente desgraçado é, no mínimo, mto cômodo. Eu sou uma pessoa mto comodista, admito, no entanto não compactuo com nenhum dos extremos que, pelo que eu entendi, estão expostos nos comentários acima. Se o mundo foi, é ou vai ser uma merda será resultado do que a sociedade a qual !NÓS! pertencemos construiu, constrói e construirá...falar que o mundo é mto bom, é realmente bom... falar que o mundo é ruim, é igualmente bom... sempre foi assim.. acredito que até mesmo na belle epoque, diziam: "porra, este mundo está uma verdadeira merda" ou na idade média diziam: "que mundo maravilhoso, meu deus!" então enquanto nascerem pessoas como Gandhi, Madre Teresa, minha mãe e meu pai(AHAHAHAHA) eu não acredito que este mundo foi, é ou será uma merda, e enquanto nascerem pessoas como hitler, mussolini, franco ou stalin, eu acredito que este mundo foi, é ou será uma merda...

Ser ou não ser o mundo uma merda? Eis uma das questões mais estúpidas que já vi.

malemolente disse...

ainda acho q vcs esqueceram o contexto que o cara escreveu.
posso ñ ser lá um amante do mundo, mas se ele tivesse uma merda num nível extremo eu acredito que já teria me matado (caso tivesse coragem para tal)
no mais meu amanhã ta garantido, talvez...

Gabriel Carvalho disse...

eh impressão minha ou vcs acharam que eu falei que o mundo eh lindo?
releiam meu texto com mais atenção

malemolente disse...

realmene eu exagerei em falar sobre o mundo lindo, mas continuo afirmando que não esperava nada mais positivo dele

ツ .iLa. disse...

De foder, esse texto.
São poucas pessoas que sabem o que dizer, hoje em dia (são poucas até as que sabem o que querem dizer). Penso que entre o capitalismo e o egoísmo de cada um há uma grande diferença. Mania das pessoas de pôr a culpa no capitalismo. Não fui eu nem vc nem o médico do texto quem inventou o capitalismo... Cada um sabe se compra coca-cola ou polpa de fruta natural.

Quanto ao coment q vc deixou no meu blog: se eu assistisse o meu futuro, eu iria ter consciência hoje em dia pra saber se quero aquilo realmente ou se quereria no tal do futuro. Então torturaria-me com a escolha de mudar isso ou aceitar (seria uma tortura preveamente escolhida, também). Odeio fatalismo. Algo que ocorrerá com certeza ou que eu poderei mudar realmente faz TODA a diferença nesse caso. Se vc tiver uma bola de cristal ou um poço mágico de águas translúcidas que sirva ao mesmo propósito, me empresta?
=D

Bjo, franguinho fofo (hihihi)
,,
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